quarta-feira, 7 de abril de 2010

Nenhum a menos

Este texto foi inspirado por um filme, que em português recebeu o nome de Nenhum a Menos - Yi Ge Dou Bu Neng Shao, realizado por Zhang Yimou, China, 1999. Por que um filme como este nos toca? Sou professora há mais de 25 anos, iniciei com turmas de educação infantil e classes de alfabetização, talvez nem mais velha que a professora retratada. Antes de mais nada, nos toca porque nos incomoda como um sopro que vem de um tempo em que éramos outra pessoa, como um cheiro que nos remete a uma outra forma de pensamento, não totalmente perdida, mas re-significada em outras práticas que foram sendo negociadas com a realidade que se nos foi sendo apresentada. Nos incomoda como um mal-estar, como algo que não mais podemos reconhecer como nosso, embora já o tenha sido. Nos chama uma nostalgia de nós mesmos, quando acreditávamos no nosso papel educativo como forma de serviço por e para todos. Me fez lembrar de pessoas, crianças que perdi. Não porque tenham partido, mas porque os deixei escapar, não consegui atingir. Crianças com nomes, histórias, que não dei conta de educar como acreditava devia ter feito, e que com alívio vi saírem de minha vida, inscrevendo-se no rol sem fim de minhas frustrações. Com elas, fiz um caminho alternativo de pesquisas que me levaram longe: mestrado, doutorado, pesquisas no CNPq. Mas as pessoas? As perdi e tentei encontra-las na busca pela educação de todos: a busca da criança universal.
A professora me diz outra jornada: a busca por cada um. Que difere radicalmente porque assume a irredutibilidade de cada ser humano a essa categoria universal. Não fui atrás das pessoas que me escaparam, seja porque não aprenderam a ler, seja porque sequer estabeleceram contato comigo. Segui me modificando e construindo relações cada vez mais próximas e atenciosas com os sujeitos que a vida pôs no meu caminho. Mas a professora me atira no rosto o abandono que pratiquei, a troca mal sucedida que fiz. Ela me faz compreender que muitas das questões de pesquisa que constroem o universo teórico geral, e o das ciências da educação de modo específico, provavelmente foram edificadas sobre ruínas de frustrações pessoais e profissionais. O que compromete essa edificação historicamente chamada Educação. Tal como Benjamin via a história, o anjo de Paul Klee olha horrorizado para o passado, avançando de costas para o futuro, vendo a multidão de deserdados do sistema educacional, vidas humanas que não demos conta de entrar em relação. Esta talvez seja a reflexão mais profunda, porque pessoal, a que Nenhum a Menos me remete.
Segundo, o filme nos afeta porque funciona como Brecht dizia sobre o teatro do estranhamento. Serve para evidenciar uma ação que nos causa um choque, uma disrupção e que, em reflexo, releva o seu contrário: a pauperidade das relações sociais que posso melhor analisar no campo das relações educacionais. A professora age de modo diametralmente oposto às ações que praticamos e naturalizamos no universo educativo. Naturalizamos a evasão escolar. Não só a evasão stricto sensu, mas as infinitas evasões que ocorrem no cotidiano das instituições sociais, em específico a escola. A democratização da escola básica, necessidade da modernidade industrial, obrigou a que “todas” as crianças tivessem grande parte de sua socialização confiada à escola. Escola não: confiadas às pessoas, que somos nós, que compõem o universo social desta instituição chamada escola. Mas o que se vê nas práticas escolares, tomando como exemplo nossa própria história? Em nome de uma pretensa objetividade, a maioria das pessoas que ingressa e permanece na instituição escolar não tem voz, muitas delas sequer são reconhecidas por seus nomes.
Como todas as instituições ocidentais, que têm a marca da burocratização como característica, as pessoas são convertidas a números, a estatísticas. Alguns exemplos elucidam isso. O primeiro que gostaria de trazer é a transformação, em percentual, da parcela de alunos que não conseguem acompanhar o ritmo incessante do trabalho docente sobre um determinado conjunto de conteúdos, num ano letivo. Aqueles que não seguem a marcha são computados como percentual que se, aceitável, legitima a prática. Segundo: a conversão dos “rendimentos” escolares em números ou frações de um todo determinado. “É um aluno nota 10”, ou então, “um aluno fraco”, se entendermos que “fraco” é o correspondente a uma parte de uma totalidade denominada em frações: ótimo-bom-fraco. Há outros requintes categoriais, dependendo do nível de ensino, como o CR, por exemplo.
As pessoas, suas histórias, sua contextualidade histórica, essas raramente são investigadas, trazidas ao diálogo na instituição escolar. Essa impessoalidade, uma vez uma professora me disse, aplaca de certa forma o sentimento que temos de estarmos a decidir os rumos destas pessoas. É assim que a burocracia age, seja na escola, seja no hospital, seja na prisão, como dizia Foucault. Desprovidos dos contatos fundadores das relações sociais, deflagradores dos processos interativos que alimentam as curiosidades, os desejos, os sujeitos refugiam-se em formas alternativas de relações, muitas vezes subterrâneas. Aqueles que não conseguem estabelecer essas redes evadem-se a cada dia não só da escola, mas das relações políticas em geral que a escola inaugura em suas vidas.
Nos perguntamos sempre pelos alunos “violentos”, pelos alunos “apáticos”, pelos alunos desinteressados e um tanto mais de nomes que se dêem aos alunos que perdemos. Não nos perguntamos realmente se os conhecemos, se entramos em contato com eles, como pessoas. Uma vez uma secretária de educação me disse: “trate essa criança como pessoa, olhe-a nos olhos, chame-a pelo nome, faça-a sentir-se pessoa. Pode ser a última vez na sua vida que alguém fará isso com ela”.
A escola brasileira é composta, em sua maioria, por crianças oriundas das camadas populares. Num cenário histórico pós-colonialista, isso significa dizer que são na sua maioria crianças mestiças, que sofrem o impacto da experiência do racismo diretamente em sua socialização escolar. A falta de expectativa nelas depositada faz com que normalize-se suas evasões, naturalizando-se assim os preceitos que forjaram nossa história. Por isso é que ir atrás da criança, não aceitar sua partida é recebido por nós como estranhamento. Porque representa um choque nas formas naturais de se lidar com a criança que evade-se.
A professora de Nenhum a Menos vai porque precisava receber seu dinheiro prometido. Mas perde-se na busca e encontra seu país. A indiferença generalizada que encontra torna-se mote da busca e denuncia as práticas de um regime autoritário, o mesmo que sublimamos em nosso neocolonialismo de mercado. A indiferença ao ser humano concreto, “sujo do mundo” é a mesma. O efeito de estranhamento que produz nos faz refletir sobre nossas próprias práticas, sobre a constituição de nosso mundo moderno.
Crentes que somos no pressuposto da igualdade dos seres humanos, uma das instituições fundantes de nossa cultura ocidental moderna, nos perdemos nessa tarefa impossível. O que faríamos se em nossos contratos estivesse inscrita a cláusula acordada pelo professor titular de não admitir “nenhum a menos”? Nenhuma criança sem alfabetizar-se, nenhuma criança sem aprender, nenhum jovem sem o pensamento crítico e criativo anunciado como teleologia da educação básica? A expressão “nenhum a menos” está implícita nos pressupostos de obrigatoriedade do ensino fundamental, garantida por uma rede de regulamentações legais. Mas o que significa isso em nossas formas de agir cotidianas?
O que o filme revela, pelo choque de seu estranhamento, é o paradoxo da cultura capitalista que se pretende democrática. Se o estado democrático reza na letra da lei “nenhum a menos”, o mundo do capital já nos disse há décadas e todos os dias que não suporta “nenhum a mais”. A opção da professora vimos no filme. As nossas, constantemente negociadas, não representam nenhuma radicalidade, nem no discurso, nem nas reflexões, nem nas ações. Sublimamos nossa frustração e as traduzimos em discursos acadêmicos muitos, no máximo. Pensar na professora como metáfora de nossas não idas, não buscas é rever nossos percursos e, como ela, pensar que nossas ações “revolucionárias” também têm, no encalço, o dragão do mundo do quarto poder a nos rondar, nos rodear, nos fazer negociar, o que neste caso, significa também capitular.

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