sábado, 9 de maio de 2015

Revoltado ou criativo?

O texto abaixo está no livro de Vasco Moretto: "Prova: momento privilegiado de estudo, não um acerto de contas", publicado em 2001.

Há algum tempo recebi um convite de um colega para servir de árbitro na revisão de uma prova. Tratava-se de avaliar uma questão de Física, que recebera nota 'zero'. O aluno contestava tal conceito, alegando que merecia nota máxima pela resposta, a não ser que houvesse uma 'conspiração do sistema' contra ele. Professor e aluno concordaram em submeter o problema a um juiz imparcial, e eu fui o escolhido.
Chegando à sala de meu colega, li a questão da prova, que dizia: 'Mostrar como pode-se determinar a altura de um edifício bem alto com o auxilio de um barômetro.' A resposta do estudante foi a seguinte:
'Leve o barômetro ao alto do edifício e amarre uma corda nele; baixe o barômetro até a calçada e em seguida levante, medindo o comprimento da corda; este comprimento será igual à altura do edifício.'
Sem dúvida era uma resposta interessante, e de alguma forma correta, pois satisfazia o enunciado. Por instantes vacilei quanto ao veredito. Recompondo-me rapidamente, disse ao estudante que ele tinha forte razão para ter nota máxima, já que havia respondido a questão completa e corretamente. Entretanto, se ele tirasse nota máxima, estaria caracterizada uma aprovação em um curso de Física, mas a resposta não confirmava isso. Sugeri então que fizesse uma outra tentativa para responder a questão. Não me surpreendi quando meu colega concordou, mas sim quando o estudante resolveu encarar aquilo que eu imaginei lhe seria um bom desafio. Segundo o acordo, ele teria seis minutos para responder a questão, isto após ter sido prevenido de que sua resposta deveria mostrar, necessariamente, algum conhecimento de Física.
Passados cinco minutos ele não havia escrito nada, apenas olhava pensativamente para o forro da sala. Perguntei-lhe então se desejava desistir, pois eu tinha um compromisso logo em seguida, e não tinha tempo a perder.Mais surpreso ainda fiquei quando o estudante anunciou que não havia desistido. Na realidade tinha muitas respostas, e estava justamente escolhendo a melhor. Desculpei-me pela interrupção e solicitei que continuasse.
No momento seguinte ele escreveu esta resposta:
'Vá ao alto do edifico, incline-se numa ponta do telhado e solte o barômetro, medindo o tempo t de queda desde a largada até o toque com o solo. Depois, empregando a fórmula
h = (1/2)gt^2
calcule a altura do edifício.'

Perguntei então ao meu colega se ele estava satisfeito com a nova resposta, e se concordava com a minha disposição em conferir praticamente a nota máxima à prova. Concordou, embora sentisse nele uma expressão de descontentamento, talvez inconformismo.
Ao sair da sala lembrei-me que o estudante havia dito ter outras respostas para o problema. Embora já sem tempo, não resisti à curiosidade e perguntei-lhe quais eram essas respostas.
"Ah!, sim," - disse ele - "há muitas maneiras de se achar a altura de um edifício com a ajuda de um barômetro."
Perante a minha curiosidade e a já perplexidade de meu colega, o estudante desfilou as seguintes explicações.
"Por exemplo, num belo dia de sol pode-se medir a altura do barômetro e o comprimento de sua sombra projetada no solo. bem como a do edifício. Depois, usando uma simples regra de três, determina-se a altura do edifício."
"Um outro método básico de medida, aliás bastante simples e direto, é subir as escadas do edifício fazendo marcas na parede, espaçadas da altura do barômetro. Contando o número de marcas ter-se a altura do edifício em unidades barométricas."
"Um método mais complexo seria amarrar o barômetro na ponta de uma corda e balançá-lo como um pêndulo, o que permite a determinação da aceleração da gravidade (g). Repetindo a operação ao nível da rua e no topo do edifício, tem-se dois g's, e a altura do edifício pode, a princípio, ser calculada com base nessa diferença."
"Finalmente", concluiu, "se não for cobrada uma solução física para o problema, existem outras respostas. Por exemplo, pode-se ir até o edifício e bater à porta do síndico. Quando ele aparecer; diz-se:
'Caro Sr. síndico, trago aqui um ótimo barômetro; se o Sr. me disser a altura deste edifício, eu lhe darei o barômetro de presente.'"
A esta altura, perguntei ao estudante se ele não sabia qual era a resposta 'esperada' para o problema. Ele admitiu que sabia, mas estava tão farto com as tentativas dos professores de controlar o seu raciocínio e cobrar respostas prontas com base em informações mecanicamente arroladas, que ele resolveu contestar aquilo que considerava, principalmente, uma farsa.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

"O que é científico?" - Rubem Alves


 "O que é científico?"
Rubem Alves

Colega aposentado com todas as credenciais e titulações. Fazia tempo que a gente não se via. Entrou no meu escritório sem bater e sem se anunciar. E nem disse bom dia. Foi direto ao assunto. " Rubão, estou escrevendo um livro em que conto o que aprendi através da minha vida. Mas eles dizem que o que escrevo não serve. Não é científico. Rubão: o que é científico?" Havia um ar de indignação e perplexidade na sua pergunta. Uma sabedoria de vida tinha de ser calada: não era científica. As inquisições de hoje, não é mais a igreja que faz.
Não sou filósofo. Eles sabem disso e nem me convidam para seus simpósios eruditos. Se me convidassem eu não iria. Faltam-me as características essenciais. Nietzsche, bufão, fazendo caçoada, cita Stendhal sobre as características do filósofo: "Para se ser um bom filósofo é preciso ser seco, claro e sem ilusões. Um banqueiro que fez fortuna tem parte do caráter necessário para se fazer descobertas em filosofia, isto é, para ver com clareza dentro daquilo que é."
Não sou filósofo porque não penso a partir de conceitos. Penso a partir de imagens. Meu pensamento se nutre do sensual. Preciso ver. Imagens são brinquedos dos sentidos. Com imagens eu construo estórias. E foi assim que, no preciso momento em que meu colega formulou sua pergunta perplexa, chamadas por aquela pergunta augusta, apareceram na minha cabeça imagens que me contam uma estória: "Era uma vez uma aldeia às margens de um rio, rio imenso cujo lado de lá não se via, as águas passavam sem parar, ora mansas, ora furiosas, rio que fascinava e dava medo, muitos haviam morrido em suas águas misteriosas, e por medo e fascínio os aldeões haviam construído altares às suas margens, neles o fogo estava sempre aceso, e ao redor deles se ouviam as canções e os poemas que artistas haviam composto sob o encantamento do rio sem fim. O rio era morada de muitos seres misteriosos. Alguns repentinamente saltavam de suas águas, para logo depois mergulhar e desaparecer. 
Outros, deles só se viam os dorsos que se mostravam na superfície das águas. E havia as sombras que podiam ser vistas deslizando das profundezas, sem nunca subir à superfície. Contava-se, nas conversas à roda do fogo, que havia monstros, dragões, sereias, e iaras naquelas águas, sendo que alguns suspeitavam mesmo que o rio fosse morada de deuses. E todos se perguntavam sobre os outros seres, nunca vistos, de número indefinido, de formas impensadas, de movimentos desconhecidos, que morariam nas profundezas escuras do rio. 
Mas tudo eram suposições. Os moradores da aldeiam viam de longe e suspeitavam - mas nunca haviam conseguido capturar uma única criatura das que habitavam o rio: todas as suas magias, encantações, filosofias e religiões haviam sido inúteis: haviam produzido muitos livros mas não haviam conseguido capturar nenhuma das criaturas do rio. Assim foi, por gerações sem conta. Até que um dos aldeões pensou um objeto jamais pensado. (O pensamento é uma coisa existindo na imaginação antes dela se tornar real. A mente é útero. A imaginação a fecunda. Forma-se um feto: pensamento. Aí ele nasce...). 
Ele imaginou um objeto para pegar as criaturas do rio. Pensou e fez. Objeto estranho: uma porção de buracos amarrados por barbantes. Os buracos eram para deixar passar o que não se desejava pegar: a água. Os barbantes eram necessários para se pegar o que se deseja pegar: os peixes. Ele teceu uma rede. Todos se riram dele quando ele caminhou na direção do rio com a rede que tecera. Riram-se dos buracos dela. Ele nem ligou. Armou a rede como pode e foi dormir. No dia seguinte, ao puxar a rede, viu que nela se encontrava, presa, enroscada, uma criatura do rio: um peixe dourado. Foi aquele alvoroço. Uns ficaram com raiva. Tinham estado tentando pegar as criaturas do rio com fórmulas sagradas, sem sucesso. Disseram que a rede era objeto de feitiçaria. 
Quando o homem lhes mostrou o peixe dourado que sua rede apanhara eles fecharam os olhos e o ameaçaram com a fogueira. Outros ficaram alegres e trataram de aprender a arte de fazer redes. Os tipos mais variados de redes foram inventados. Redondas, compridas, de malhas grandes, de malhas pequenas, umas para serem lançadas, outras para ficarem à espera, outras para serem arrastadas. Cada rede pegava um tipo diferente de peixe. Os pescadores-fabricantes de redes ficaram muito importantes. 
Porque os peixes que eles pescavam tinham poderes maravilhosos para diminuir o sofrimento e aumentar o prazer. Havia peixes que se prestavam para ser comidos, para curar doenças, para tirar a dor, para fazer voar, para fertilizar os campos e até mesmo para matar. Sua arte de pescar lhes deu grande poder e prestígio e eles passaram a ser muito respeitados e invejados. Os pescadores-fabricantes de redes se organizaram numa confraria. Para se pertencer à confraria era necessário que o postulante soubesse tecer redes e que apresentasse, como prova de sua competência, um peixe pescado com as redes que ele mesmo tecera. 
Mas uma coisa estranha aconteceu. De tanto tecer redes, pescar peixes e falar sobre redes e peixes, os membros da confraria acabaram por esquecer a linguagem que os habitantes da aldeia haviam falado sempre e ainda falavam. Puseram, no seu lugar, uma linguagem apropriada às suas redes e os seus peixes, e que tinha de ser falada por todos os seus membros, sob pena de expulsão. A nova linguagem recebeu o nome de ictiolalês ( do grego "ichthys" = peixe + "lalia"= fala ). 
Mas, como bem disse Wittgenstein, alguns séculos depois " os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo". O meu mundo é aquilo sobre o que posso falar. A linguagem estabelece uma ontologia. Os membros da confraria, por força dos seus hábitos de linguagem, passaram a pensar que somente era real aquilo sobre que eles sabiam falar, isto é, aquilo que era pescado com redes e falado em ictiolalês. 
Qualquer coisa que não fosse peixe, que não fosse apanhado com suas redes, que não pudesse ser falado em ictiolalês, eles recusavam e diziam: "Não é real". Quando as pessoas lhes falavam de nuvens eles diziam: " Com que rede esse peixe foi pescado?" A pessoa respondia: "Não foi pescado, não é peixe." Eles punham logo fim à conversa: "Não é real". O mesmo acontecia se as pessoas lhes falavam de cores, cheiros, sentimentos, música, poesia, amor, felicidade. Essas coisas, não há redes de barbante que as peguem. A fala era rejeitada com o julgamento final: " Se não foi pescado no rio com rede aprovada não é real. "As redes usadas pelos membros da confraria eram boas? Muito boas. 
Os peixes pescados pelos membros da confraria eram bons? Muito bons. As redes usadas pelos membros da confraria se prestavam para pescar tudo o que existia no mundo? Não. Há muita coisa no mundo, muita coisa mesmo, que as redes dos membros da confraria não conseguem pegar. São criaturas mais leves, que exigem redes de outro tipo, mais sutis, mais delicadas. E, no entanto, são absolutamente reais. Só que não nadam no rio. 
Meu colega aposentado com todas as credenciais e titulações: mostrou para os colegas um sabiá que ele mesmo criara. Fez o sabiá cantar para eles e eles disseram: "Não foi pego com as redes regulamentares; não é real; não sabemos o que é um sabiá; não sabemos o que é o canto de um sabiá... "Sua pergunta está respondida, meu amigo: o que é científico? Resposta: é aquilo que caiu nas redes reconhecidas pela confraria dos cientistas. Cientistas são aqueles que pescam no grande rio... Mas há também os céus e as matas que se enchem de cantos de sabiás...Lá as redes dos cientistas ficam sempre vazias.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Nenhum a menos

Este texto foi inspirado por um filme, que em português recebeu o nome de Nenhum a Menos - Yi Ge Dou Bu Neng Shao, realizado por Zhang Yimou, China, 1999. Por que um filme como este nos toca? Sou professora há mais de 25 anos, iniciei com turmas de educação infantil e classes de alfabetização, talvez nem mais velha que a professora retratada. Antes de mais nada, nos toca porque nos incomoda como um sopro que vem de um tempo em que éramos outra pessoa, como um cheiro que nos remete a uma outra forma de pensamento, não totalmente perdida, mas re-significada em outras práticas que foram sendo negociadas com a realidade que se nos foi sendo apresentada. Nos incomoda como um mal-estar, como algo que não mais podemos reconhecer como nosso, embora já o tenha sido. Nos chama uma nostalgia de nós mesmos, quando acreditávamos no nosso papel educativo como forma de serviço por e para todos. Me fez lembrar de pessoas, crianças que perdi. Não porque tenham partido, mas porque os deixei escapar, não consegui atingir. Crianças com nomes, histórias, que não dei conta de educar como acreditava devia ter feito, e que com alívio vi saírem de minha vida, inscrevendo-se no rol sem fim de minhas frustrações. Com elas, fiz um caminho alternativo de pesquisas que me levaram longe: mestrado, doutorado, pesquisas no CNPq. Mas as pessoas? As perdi e tentei encontra-las na busca pela educação de todos: a busca da criança universal.
A professora me diz outra jornada: a busca por cada um. Que difere radicalmente porque assume a irredutibilidade de cada ser humano a essa categoria universal. Não fui atrás das pessoas que me escaparam, seja porque não aprenderam a ler, seja porque sequer estabeleceram contato comigo. Segui me modificando e construindo relações cada vez mais próximas e atenciosas com os sujeitos que a vida pôs no meu caminho. Mas a professora me atira no rosto o abandono que pratiquei, a troca mal sucedida que fiz. Ela me faz compreender que muitas das questões de pesquisa que constroem o universo teórico geral, e o das ciências da educação de modo específico, provavelmente foram edificadas sobre ruínas de frustrações pessoais e profissionais. O que compromete essa edificação historicamente chamada Educação. Tal como Benjamin via a história, o anjo de Paul Klee olha horrorizado para o passado, avançando de costas para o futuro, vendo a multidão de deserdados do sistema educacional, vidas humanas que não demos conta de entrar em relação. Esta talvez seja a reflexão mais profunda, porque pessoal, a que Nenhum a Menos me remete.
Segundo, o filme nos afeta porque funciona como Brecht dizia sobre o teatro do estranhamento. Serve para evidenciar uma ação que nos causa um choque, uma disrupção e que, em reflexo, releva o seu contrário: a pauperidade das relações sociais que posso melhor analisar no campo das relações educacionais. A professora age de modo diametralmente oposto às ações que praticamos e naturalizamos no universo educativo. Naturalizamos a evasão escolar. Não só a evasão stricto sensu, mas as infinitas evasões que ocorrem no cotidiano das instituições sociais, em específico a escola. A democratização da escola básica, necessidade da modernidade industrial, obrigou a que “todas” as crianças tivessem grande parte de sua socialização confiada à escola. Escola não: confiadas às pessoas, que somos nós, que compõem o universo social desta instituição chamada escola. Mas o que se vê nas práticas escolares, tomando como exemplo nossa própria história? Em nome de uma pretensa objetividade, a maioria das pessoas que ingressa e permanece na instituição escolar não tem voz, muitas delas sequer são reconhecidas por seus nomes.
Como todas as instituições ocidentais, que têm a marca da burocratização como característica, as pessoas são convertidas a números, a estatísticas. Alguns exemplos elucidam isso. O primeiro que gostaria de trazer é a transformação, em percentual, da parcela de alunos que não conseguem acompanhar o ritmo incessante do trabalho docente sobre um determinado conjunto de conteúdos, num ano letivo. Aqueles que não seguem a marcha são computados como percentual que se, aceitável, legitima a prática. Segundo: a conversão dos “rendimentos” escolares em números ou frações de um todo determinado. “É um aluno nota 10”, ou então, “um aluno fraco”, se entendermos que “fraco” é o correspondente a uma parte de uma totalidade denominada em frações: ótimo-bom-fraco. Há outros requintes categoriais, dependendo do nível de ensino, como o CR, por exemplo.
As pessoas, suas histórias, sua contextualidade histórica, essas raramente são investigadas, trazidas ao diálogo na instituição escolar. Essa impessoalidade, uma vez uma professora me disse, aplaca de certa forma o sentimento que temos de estarmos a decidir os rumos destas pessoas. É assim que a burocracia age, seja na escola, seja no hospital, seja na prisão, como dizia Foucault. Desprovidos dos contatos fundadores das relações sociais, deflagradores dos processos interativos que alimentam as curiosidades, os desejos, os sujeitos refugiam-se em formas alternativas de relações, muitas vezes subterrâneas. Aqueles que não conseguem estabelecer essas redes evadem-se a cada dia não só da escola, mas das relações políticas em geral que a escola inaugura em suas vidas.
Nos perguntamos sempre pelos alunos “violentos”, pelos alunos “apáticos”, pelos alunos desinteressados e um tanto mais de nomes que se dêem aos alunos que perdemos. Não nos perguntamos realmente se os conhecemos, se entramos em contato com eles, como pessoas. Uma vez uma secretária de educação me disse: “trate essa criança como pessoa, olhe-a nos olhos, chame-a pelo nome, faça-a sentir-se pessoa. Pode ser a última vez na sua vida que alguém fará isso com ela”.
A escola brasileira é composta, em sua maioria, por crianças oriundas das camadas populares. Num cenário histórico pós-colonialista, isso significa dizer que são na sua maioria crianças mestiças, que sofrem o impacto da experiência do racismo diretamente em sua socialização escolar. A falta de expectativa nelas depositada faz com que normalize-se suas evasões, naturalizando-se assim os preceitos que forjaram nossa história. Por isso é que ir atrás da criança, não aceitar sua partida é recebido por nós como estranhamento. Porque representa um choque nas formas naturais de se lidar com a criança que evade-se.
A professora de Nenhum a Menos vai porque precisava receber seu dinheiro prometido. Mas perde-se na busca e encontra seu país. A indiferença generalizada que encontra torna-se mote da busca e denuncia as práticas de um regime autoritário, o mesmo que sublimamos em nosso neocolonialismo de mercado. A indiferença ao ser humano concreto, “sujo do mundo” é a mesma. O efeito de estranhamento que produz nos faz refletir sobre nossas próprias práticas, sobre a constituição de nosso mundo moderno.
Crentes que somos no pressuposto da igualdade dos seres humanos, uma das instituições fundantes de nossa cultura ocidental moderna, nos perdemos nessa tarefa impossível. O que faríamos se em nossos contratos estivesse inscrita a cláusula acordada pelo professor titular de não admitir “nenhum a menos”? Nenhuma criança sem alfabetizar-se, nenhuma criança sem aprender, nenhum jovem sem o pensamento crítico e criativo anunciado como teleologia da educação básica? A expressão “nenhum a menos” está implícita nos pressupostos de obrigatoriedade do ensino fundamental, garantida por uma rede de regulamentações legais. Mas o que significa isso em nossas formas de agir cotidianas?
O que o filme revela, pelo choque de seu estranhamento, é o paradoxo da cultura capitalista que se pretende democrática. Se o estado democrático reza na letra da lei “nenhum a menos”, o mundo do capital já nos disse há décadas e todos os dias que não suporta “nenhum a mais”. A opção da professora vimos no filme. As nossas, constantemente negociadas, não representam nenhuma radicalidade, nem no discurso, nem nas reflexões, nem nas ações. Sublimamos nossa frustração e as traduzimos em discursos acadêmicos muitos, no máximo. Pensar na professora como metáfora de nossas não idas, não buscas é rever nossos percursos e, como ela, pensar que nossas ações “revolucionárias” também têm, no encalço, o dragão do mundo do quarto poder a nos rondar, nos rodear, nos fazer negociar, o que neste caso, significa também capitular.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Prólogo

"O artista põe em sua totalidade atômica a arte por retratar-se." Luciana
Essa frase me deixou pensativo com relação a escritos de uma forma geral. O artista dá o que tem de si, e se retrata de maneira integral, nos seus escritos, na sua pintura, na sua música, na sua arte. Assim, a beleza da arte pode ser vista e admirada por todos, e as potências artísticas ficam fortalecidas.

Da mesma forma o educador deve dar tudo de si não só nos seus escritos, mas nas suas aulas, nos debates, na rua... Porque educar é algo que vai muito além das quatro paredes de uma sala de aula, educar é uma arte, que exige muito tato. Ir no mais alto da razão e do sentimento e trazer de volta o de melhor que existe no ser humano.

O amor de mãe é algo que me inspira muito. A mãe que educa nos dá um pouco do sentimento que devemos ter ao educar. Dar casa e comida não é educar, da mesma forma que passar conceitos relativos a uma disciplina não é educar... Não é por eu ensinar Química, História, Matemática, etc, que eu vou estar educando. Mas sim, por eu tirar, a partir da Química, da História, da Matemática, etc, todas as potencialidades altruístas que um ser humano pode ter.

Assim, eduquemos. Mas eduquemos de todo nosso ser, lembrando que se não há amor na tarefa, não vale a pena nem começar.